sexta-feira, 19 de junho de 2009

Pensamento (+ 1) do dia 20/06/09

Vou colocar Sant'Antonho debaixo da cama pra sair do caritó... porque tá assim hj: "Amar é ser fiel a quem nos trai" - Nelson Rodrigues.

Pensamento do dia 20/06/09

Encontrei uma razão para estar. Já não sou... amo.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Das cinzas, o retorno

Olá colegas!

Só pra avisar: estou de volta. E agora vou começar a publicar alguns contos. São meio longos, mas a quem tiver a paciência, a recompensa.

Aguardo vocês.

O Jailson

Ainda lembro-me da primeira vez em que vi Jailson. Mas admito que só o conheci numa situação completamente inusitada! Ele era um guri bem franzino e mirrado, que vestia apenas bermudas, e quase sempre andava com os pés descalços. Seu olhar era intimador, e tinha fama de poucos amigos. A meu ver, esse pouco se resumia a nada. Morávamos numa pequena vila, formada na época por famílias sorteadas num plano de habitação da prefeitura, e por esse motivo, éramos todos desconhecidos, vindo cada um de um lugar diferente para habitar aquela região. As ruas eram de terra avermelhada, uma espécie de barro que ao menor contato com a água torna-se um atoleiro devastador. As casas, no geral, eram todas iguais, e no contrato de ocupação o inquilino assumia a responsabilidade de não mexer na estrutura da casa por alguns meses, para que mantivesse o aspecto bucólico que possuía, creio. Então, para não alterar as fachadas, as donas de casa acabavam por ornamentar as frentes de suas casas com inúmeras variedades de plantas, em vasos ou no próprio chão. Como era tudo novo, não havia árvores, e admito que sentia inveja dos meus primos que adoravam contar o quanto é gostoso comer uma fruta recém retirada do pé. Em compensação, eu adorava contá-los o quanto era bom subir em telhados e ir à escola, poder ver televisão e ter muitos amigos diferentes, enquanto eles tinham apenas uns aos outros. À noite, costuma sair para a rua e, antes de cumprimentar alguém, observar de longe o que estavam por discutir ou brincar, e sempre já chegava a eles com o assunto em dia. Isso transmitia uma segurança que me fazia bem-vindo em todas as tribos, porém nunca pertencente a uma delas, em específico. Isso me fez observar se havia mais alguém entre os outros guris que dividissem tal sentimento. Havia apenas um, e era um forte suspeito.

Certo dia, pra ser mais específico, em numa sexta feira à noite, a turma estava totalmente animada. Eles descobriram que, na estrada, alguns quarteirões acima na nossa rua, havia um sítio, e neste muitos animais vivendo livres, sem jaulas. E surgiu a idéia de que todos cuidassem para acordar cedinho no sábado e juntássemo-nos na esquina com a estrada no fim da rua. Dito, cumprido. Sábado, pela manhã, sol, temperatura agradável, as nuvens tornavam o azul do céu mais leve que nos demais dias que presenciei. Sabia que algo diferente iria acontecer. Então, estávamos todos ali faceiros que só vendo, loucos para ver a vida animal acontecendo bem diante dos olhos. Uma das vantagens dos bons tempos: As crianças tinham liberdade pra sair, andar, divertir-se sem a menor preocupação por parte dos pais – pelo menos em relação à que se é necessária hoje, era quase nula – e poder explorar todas as possibilidades de um mundo novo aos olhos.

Seguimos estrada acima, e logo avistamos o local. Entramos pela cerca de arame farpado, uns ajudando aos outros a não machucarem-se. Curioso que era, voltei um pouco e procurei ler a placa do local. Não entendi, mas presumi que era sítio que tinha ali escrito. Lembro ainda de um detalhe no mínimo engraçado: Não sabia ler direito, e não possuía conhecimento dos dígrafos, por isso continuei chamando o “Rancho” de sítio por muito tempo. Por ter me afastado do grupo, notei que havia uma das crianças que estava a nos acompanhar sorrateiramente, sem estar junto do grupo. Era ele. E agora? Será que eu falo? Será que eu corro? Grito? E o dono do sítio? Calei. E segui ao grupo e ao garoto estranho, esquivando para que não percebesse minha presença.

Quando nos demos conta, estávamos diante do maior santuário da vida animal que já havia visto - e, diga-se de passagem, na TV – e este era certamente a experiência mais incrível que já vivera até aquele instante. Quando me dei conta, o garoto estava bem atrás de mim. Que susto! E agora? Olhamo-nos por algum tempo, e inclinei levemente minha cabeça para a esquerda, como que procurasse traduzir o que aqueles olhos escuros e bem arredondados tentavam me traduzir.

- Oi! Porque ‘cê não se mistura?

- Não sei – retrucou o guri.

- Mas a gente é legal. ‘Cê quer que eu leve você até lá?

Não obtive resposta nenhuma. Mas o olhar dele era incrivelmente expressivo, e traduzia seu sentimento de forma instantânea. E notei que estava ansioso para entrar no meio da turma.

- Qual seu nome?

- Jailson.

- Vem, vou te apresentar ali pra galera.

Não foi uma recepção calorosa, pois ele não respondia a nenhum estímulo externo. Era frio como uma lápide para quem não está acostumado a olhar nos olhos, mas ao fazê-lo, sentia-se como seu fosse o olhar mais puro que já caíra sobre alguém, como um anjo a analisar todos os teus passos. E acho que a maioria na realidade nem deu a mínima pro Jailson. Então entramos rancho adentro e vislumbramos tantos animais quanto meus pequenos dedos podiam contar. O grupo seguiu unido, e saiu unido do passeio mais encantador que a minha infância viveu. Voltamos lá outras vezes, e o grupo começou a identificar-se com a mata, com a fauna. E cada um de nós adotou um estilo animal de ser. Não lembro bem quem era o quê, mas sei que Jailson escolheu o estilo macaco. Só saberia o porquê depois.

Certo dia aconteceu um incidente. Por mais incrível que pareça, não me lembro do que engatilhou tal acontecimento, por mais relevante que seja, e por mais que me esforce. Só o que lembro é que vi Jailson correr em direção à estrada e sumir meio ao mato. Eu não me contive e corri atrás. Procurei por ele, mas sem sucesso. Daí, lembrei de como ele gostava de observar os macacos. E foi exatamente onde fui procurá-lo. Chegando à pedra dos macacos, como a chamávamos, pois era lá que os macacos sempre estavam, fiquei observando o comportamento dos macacos e acabei saindo um pouco de mim. Acho que me coloquei ali, na posição daquele macaco que estava de costas para outro, enquanto este lhes coçava e catava as costas, e me senti num colo, com um afeto incrível. “Como os macacos são companheiros uns dos outros”, pensei. E logo em seguida atinei que deveria estar a procurar por meu colega. Ouvi passos fortes no meio do mato. Algo estava acontecendo. Corri por entre as árvores, e vi um macaco enlouquecido pulando de galho em galho, e muitos outros pulavam atrás como que caçassem uma presa em fuga. Resolvi ficar ali escondido e não me submeter à fúria dos primatas nervosos.

Quando senti que estava seguro, saí. Corri de volta pra vila. Ainda não sei, não sou de assustar fácil, então, não sei o que estava sentindo àquele momento. Mas sabia pra onde deveria ir. Segui na rua principal por algumas casas rua abaixo e na terceira entrada eu caminhei mais um pouco e avistei a casa do bendito do Jailson. As casas da vila não tinham muros, eram apenas casas soltas em meio ao terreno. E notei que estava acontecendo algo na parte de trás da casa do dito. Andei furtivamente e pude avistar o meu colega enterrando algo que parecia um ovo gigante, isso mesmo, um ovo, e com um filhote de macaco no colo. Apenas observei a cena. Jailson me viu claro, mas o que estava a fazer era algo importante demais e as explicações poderiam esperar. Terminado o feito, apenas continuei a olhar não como quem pedia uma explicação, mas como alguém que gostaria de tê-la.

- Os macacos são os únicos que são bons amigos, e eu quero um – sussurrou o garoto – ‘cê entende?

- Não acho, mas se ‘cê acha... – respondi.

- Ei, “num” conta pra ninguém tá? – Confidenciou.

- Mas pra quê enterrar o ovo?

- Roubei do ninho dos macacos, caso eles me levem esse, eu tenho o ovo.

Até onde eu sabia macaco não punha ovo, mas... Fiz que não ouvi. E desse dia em diante, eu mantive certo contato com Jailson, que por sua vez, isolou-se de todos. O macaco cresceu, e a mãe de meu colega, com medo de que o dono do tal rancho aparecesse pra tomar satisfações, acobertou o macaco em casa, e não recebeu mais visitas desde então. O guri viveu quase todo o tempo com seu macaco. A rua comentava a ausência da criança na rua, mas a mãe justificava para as vizinhas que o filho era reservado e não gostava de companhia, o que entrava em contradição diante do fato de que eu o visitava quase que diariamente. O macaco era muito doce, e adotou o menino como seu companheiro em tempo integral. Nada faziam longe um do outro. Eram unha e carne. Amigos de verdade. O garoto demonstrava satisfação total com seu animal, e seus sentimentos já não precisavam da estreita porta do olhar, agora jorravam pelos graciosos sorrisos que constantemente apresentava em sua jovem face pubescendo.

Lembro-me de uma manhã em que cheguei do colégio e fui visitá-lo. Acho que me divertia ao ver o quão felizes eram os dois, tão suficientes um ao outro. Estar diante deles era como vivenciar uma daquelas cenas de filme de cinema, onde a coisa toda acontece em câmera lenta, com uma luz dourada iluminando aos rostos rosados e gotículas de água que dão brilho total a imagem. Ao entrar na casa, os dois estavam sentados no sofá da pequena sala, diante de uma TV e felizes com o acontecido. Pela primeira vez em anos, Jailson me olhou nos olhos e sugeriu “senta aqui com a gente pra ver o desenho”. Todo esse tempo eu fazia o papel de ouvinte, pois meu bom colega usava todo o tempo em que passávamos juntos para expor o que pensava, e geralmente eu pronunciava algumas poucas palavras, e trocávamos apenas os cumprimentos normais, e ele nunca me olhava nos olhos. Nessa manhã, senti como se finalmente tivesse entrado no âmago dele, finalmente podendo auto-proclamar a mim como amigo de Jailson. Aceitei o convite e me diverti. Depois do desenho, conversamos um pouco, e ele perguntou de algumas pessoas com quem até mesmo eu não falava há um tempo. “Boa memória” – pensei. Inteligente ele era. A mãe comprava os livros para que ele estudasse em casa, e eu trazia as minhas provas do colégio copiadas em meu caderno para que ela própria aplicasse a ele. E ele sempre tirava notas altíssimas. Isso me dava certa inveja, mas nada que uma criança não deva sentir e aprender como controlar antes de ser contaminada pela malícia da vida adulta.

Alguns anos passaram-se. Estou eu então com 21 anos. Agora vem a parte esquisita da história. E ousaria dizer que foi a mais emocionante que vivi. E é a essa parte que remeti no início da história, quando o conheci de verdade. Numa manhã de sábado, acordei um pouco mais tarde. Tomei meu café preto, com um pão francês besuntado em margarina, e sempre com o hábito de mergulhar a ponta da fatia de pão no café a cada mordida. Terminado o lanche, arrumei o cabelo e saí para visitar meu amigo, como de praxe das manhãs de sábado. A essa altura, tudo estava diferente. Agora morava na Rua Central. Saí de casa, desci os degraus, caminhei alguns passos até a grade, abri o cadeado e finalmente saí da minha jaula particular chamada por outros de “casa”. Caminhei rua abaixo, passando pela quitanda, padaria, açougue e dobrando na Rua 4 à esquerda. Segui adiante até o final da rua, até a casa do muro verde, número 427. Chamei a mãe de meu amigo. Ela me abriu o portão. Passei direto em princípio, mas ao chegar à porta notei que algo estranho acontecera. Olhei em seus olhos e ela estava visivelmente abalada. “O que terá acontecido? Acho que vou perguntar ao Jailson e deixar a mãe dele em paz”, pensei. Caminhei sozinho pela casa até o quintal. E lá estava meu amigo, finalizando um ritual fúnebre no mesmo local onde enterrara o tal ovo.

- O que aconteceu? – Perguntei.

- Não sei, mas não entendo e não vou entender. – retrucou.

- Sinto muito, queria poder fazer algo. Vamos dar uma volta, respirar? Que acha?

E mais uma vez, ele nada respondeu. Apenas me olhou daquele jeito que outrora fizera. Eu não conseguia reagir instantaneamente diante daqueles olhos. Eles me travavam de um jeito como se eu fosse incapaz de viver tão intensamente quanto aqueles olhos me pediam para fazer. Então, o acolhi e levei para conhecer um pouco da nova vila.

As pessoas se indagavam: Quem é? Será? Depois de tantos anos? Como pode? Achei que era atrofiado e andava em cadeira de rodas...

Levei-o até o Rancho Alto do Bom Pastor, e pedi que o guia nos mostrasse o habitat dos macacos. Ao chegar lá, apontei-o o grupo:

- ‘Tá vendo aquela ali? – perguntei.

- Qual? - Ele comentou.

- Aquela. Como ela parece estar se sentindo?

- Bem... eu diria... feliz, contente, sei lá. – retrucou, sem entender o objetivo.

-Exato. Mas ela é a mãe do macaco que você roubou àquele dia. E a vida dela continuou. Como ela conseguiu? Ela seguiu em frente com seus amigos. Acho que você também conseguirá fazer o mesmo. Que tal?

Ele novamente me olhou daquele jeito. Tentei desviar o olhar e o convidei a passear pelo rancho. Caminhamos, comemos, descansamos à sombra das árvores, e resolvemos voltar pra casa. A caminho de casa passamos pelo boteco do Seu Joãozim, paramos, e então resolvi oferecê-lo uma cerveja. Ele olhou minuciosamente o copo com o líquido, quase como se fosse dizer todas as propriedades da bebida em seguida.

- Seu Joãozim, esse aqui é o filho da...

- Não acredito! Ainda ‘tá vivo menino! – atropelou de supetão o final de minha frase – Quando resolveu sair? Tome mais uma, e essa é por conta da casa!

A conversa prosseguiu animada, e Jailson acabou embebedando-se. Animado que só ele, respondia a tudo com a maior naturalidade. Sentia uma pureza absurda vindo daquele jovem. Como pode alguém parecer tão imaculado diante das indagações mais fúteis e imorais que eu já vi? A cidade inteira estava comentando que estávamos a tomar todas no boteco. Então, não demorou e estávamos muito acompanhados. Muito mesmo. Todos pareciam felizes com o retorno do moço à vida social. Até que veio a pergunta:

- Mas porque ‘cê tava com a cara tão triste quando passou na Central?

Silenciou.

- Pode falar cara, estamos entre amigos.

E o pobre Jailson, na sua inocência, respondeu quase que de imediata reação à palavra “amigos”:

- Ah, é que meu amigo macaco morreu.

Silêncio no boteco.

- Como assim? – replicou Seu Joãozim.

E então ele contou a todos a sua incrível saga com seu amigo macaco. E é óbvio que alguns colegas riram disfarçadamente, enquanto as senhoras juntavam as últimas e faltosas peças do quebra-cabeça e vislumbravam a imagem final. E os senhores comentavam uns com os outros o quão absurdo era aquilo tudo. Senti-me totalmente responsável pela situação. E meu amigo, mesmo sem malícia, notou algo esquisito.

- Tem algo errado? – Perguntou Jailson.

- Se tem algo errado? Não, meu macaco ‘tá em casa, ‘tá fazendo minha janta! – Alguém soltou de longe.

Houve uma euforia generalizada. Todos riam do pobre Jailson e eu me sentia totalmente culpado por isso.

Calma, essa ainda não foi a tal parte inusitada.

Era entardecer e meu amigo saiu correndo em direção à sua casa. Tente alcançá-lo, mas ele tinha um preparo físico incrível! Procurei-o por todos os lugares, mas não o encontrei. Ficava olhando pra todos os lugares, e não via ninguém em parte alguma. A cidade parecia deserta. Foi aí que me dei conta que era dia 23 de novembro, dia em que a vila foi fundada, e todos tinham o hábito de juntarem-se no boteco do Joãozim e queimar fogos de artifício para comemorar.

Pude observar que haviam muitas caixas idênticas jogadas sobre o telhado das casas, ligadas por um fio, meio que formando um sistema unificado, algo que comunicava todos os lares uns aos outros. Parei. Fui analisar de perto. Havia uma quantidade exorbitante de óleo espalhado pela cidade, um óleo preto e de odor muito forte, salpicado por todas as casas, pingando dos fios que ligavam as estranhas caixas. Meio que como um soco vem à face, senti um susto imenso quando me dei conta do que estava acontecendo. Corri de volta para o boteco, tentando chegar a tempo de pedir ajuda.

Ao chegar lá, eis que me deparei com Jailson, com uma parafernália atrelada ao seu corpo, gritando com todos:

- Nenhum de vocês é meu amigo, por isso vocês queimarão!

Todos gritavam enlouquecidos: “Bomba! Ele tem uma bomba!”, enquanto meu amigo os sitiava dentro do boteco.

- Pára “cum” isso cara! O que é isso?

- Ninguém é meu amigo, ninguém é! – ele gritava chorando copiosamente.

- Eu sou. – Respondi.

- Então pega fogo comigo. – ele propôs.

Então me veio à memória um momento muito difícil que vivera. Certa noite, quando eu tinha catorze anos, um grupo de jovens passou pela estrada e adentrou na nossa Rua Central. Estávamos eu, a Mãe e o Pai na calçada, sentados a conversar. Quando nos demos conta, os caras desceram do carro e tentaram nos assaltar. Foi uma luta severa, pois o Pai não era de levar desaforos, ainda mais com a sua família. Pra nosso azar, um deles estava armado e atirou no Pai à queima roupa. A Mãe então me agarrou e correu pelo beco lateral rumo ao quintal. Ela abaixou, e numa fração de tempo muito pequena, disse: “A mamãe te ama, corre e não pára mais”, e me lançou muro acima. Caí do outro lado. Não sentia dor. Meu pulso estava torcido, mas eu só pensava em obedecer ao pedido de minha mãe. Não sei, talvez por instinto. Corri e ouvi gritos do tipo “ela vai te entregar cara, ‘tá esperando o quê?”, e depois alguns disparos. Alguns dias depois voltei para a vila e uma vizinha me manteve sob cuidados até os 16, quando comecei a trabalhar e morar sozinho na casa que foi de meus pais.

Uma mãe demonstra a coragem, o amor, e toda a importância desses sentimentos nesse tipo de situação. E foi por essa postura, por pensar no que seria mais importante, que respondi:

- Aceito. Vamos, quero pegar fogo com você.

E então, ele me puxou pelo braço e corremos estrada afora.

A última coisa que me lembro é de que alguns quilômetros após corremos pela estrada, eu pude observar uma luz imensa, e uma queima de fogos nunca vista pela cidade. No outro dia, depois de caminharmos muitas horas, paramos perto de uma casa, onde um leiteiro entregava sua encomenda a uma senhora. Esta, perguntou:

- E aquela luz?

- Dona, parece que toda a Vila ____ pegou fogo. Ouvi um rumor de que um rapaz revoltado por ser humilhado por toda a vila ateou fogo a um monte de fogos de artifício e queimou todas as casas com óleo...

- Credo! E as pessoas?

- Se salvaram, não tinha ninguém em suas casas, todos estavam fora comemorando o aniversário da vila.

- Menos mal.

Epílogo

Hoje eu faço trinta e cinco anos. Quando olho pela janela sobre a pia da cozinha, vejo meus filhos - Maria Clara e André, em homenagem a meus pais – brincando com seu cachorro, ainda lembro-me do austero menino dos olhos doces que se transformou no jovem menino e seu macaco, que passou por uma grande perda, foi ridicularizado, e em seguida destruiu toda uma cidade só com fogo e óleo. Ele me ensinou muito sobre amizade. Hoje, sou gerente de uma agência multinacional, e provavelmente minha casa vai estar bem cheia logo à noite, quando aparecerão todos os amigos, familiares de minha esposa, muitos casais de clientes satisfeitos com o serviço prestado, e o meu chefe, que prometeu “que sem falta aparecerá”, e de longe será notado. Acho que vai chamar mais atenção que eu. Afinal, uma carreira bem sucedida nos negócios, uma agência de relacionamentos com mais de 5 milhões de clientes satisfeitos pelo mundo inteiro e um dos maiores defensores dos direitos animais, com contribuições anuais milionárias às organizações de proteção dos animais, é motivo mais que suficiente pra fazer com que sempre seja o centro das atenções.

Dito, feito. Estávamos todos na sala, uma nostalgia imensa. De repente, uma caixa imensa entra pela porta da frente. “Encomenda para o Sr. José Pereira Santos.”. Abri, correspondendo ao desejo dos pensamentos que ecoavam uníssono em olhares direcionados a mim. Quando abri, era uma escultura de mármore, que mostrava um macaco dependurado em um galho, segurando outro primata pela mão, e olhando fixamente em seus olhos. Claro que eu sabia que era do meu amigo, ele sempre me mandava presentes em meu aniversário, mas nunca aparecia. O ornamento artístico foi prontamente aplaudido, e em seguida, eis que meu chefe entra pela porta principal, de mão com sua esposa e filha pequena.

Ele vem em minha direção. Todos calam. Ele me entrega um cartão. Abro. Leio. Há uma frase emocionante, que me remete toda essa história que estou lhes contando. Choro, e sou amparado por um abraço fraterno ao extremo. Todos olham espantados ao ver um chefe e um funcionário trocarem tais carinhos. “Não sabia que ele era gay”, uma das convidadas comentou. “Nem eu”, retrucou outra.

“Os tempos mudaram, mas nossa infância permanece lá, imaculada. Hoje o mundo é frio, mas nós ainda pegamos fogo.”

Jailson da Silva